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O Brasil de Bolsonaro está “à deriva”?

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Por Márcia Cury
Do Brasil

Conforme destacou o editorial do Jornal Le Monde, do último dia 18 de maio, parafraseando Shakespeare, “há algo de podre no reino do Brasil”.[1] Sim, parece. E, somado a isso, parece que o país está à deriva. Para onde quer que se olhe com racionalidade, causa estranheza e inquietação a aparente normalidade no funcionamento da democracia brasileira. Fatos não faltam para duvidarmos de sua solidez. O Presidente Jair Bolsonaro parece dar de ombros para qualquer demanda de respeito às instituições e protocolos exigidos de um chefe de Estado. Mas, conforme já mencionado em artigo anterior[2], suas práticas não trazem nenhuma novidade diante de seu comportamento nestes 30 anos de vida pública. Seus atos, porém, vão tomando proporções que desafiam cada vez mais a legitimidade de uma frágil democracia institucional que já sofre com a desconfiança da maioria dos brasileiros.

O nepotismo crônico de Bolsonaro

O candidato que se apresentava como alguém acima de ideologias, colocando estas como uma prerrogativa da esquerda, agarra-se a cada ato nas suas opiniões e no conjunto de “ideias” advindos do seu núcleo duro ideológico de extrema-direita, liderado pelo guru Olavo de Carvalho. Para mencionar os atos mais recentes, destaco as constantes trocas dos titulares nos ministérios, conduzidas a partir de critérios como afinidades pessoais, graus de apoio à sua candidatura, ou margem para a implementação das crenças de Bolsonaro nas políticas públicas.

A atriz Regina Duarte, que em desastrosas entrevistas relativizou o racismo brasileiro e a tortura praticada pelo regime militar assumiu o Ministério da Cultura.[3] Após dois meses à frente da pasta, foi conduzida à Cinemateca, espaço localizado em São Paulo que dedica-se à preservação da memória do cinema brasileiro. Se confirmada a nomeação, que enfrenta entraves, a atriz viria a substituir uma profissional da área que se encontra há 36 anos coordenando os projetos da instituição.[4] Para o Ministério da Cultura, é cogitado agora um ator, Mario Frias, que, embora sem grande expressão no cenário cultural, colocou-se à disposição do presidente da República para ser seu braço direito.

Caos no crítico setor da saúde

No Ministério da Saúde o caos está instalado. Após a saída do ministro Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich, seu substituto, permaneceu no cargo pouco menos de um mês. Sua passagem pela pasta teve como episódio mais significativo o seu espanto ao ser questionado sobre portaria publicada pela Presidência da República que autorizava a reabertura de serviços que passariam a ser considerados essenciais, como barbearias, salões de beleza e academias de ginástica. Foi a mais clara demonstração de quem não sabia o que estava fazendo no cargo.[5] Desde a sua saída, o Ministério vem sendo liderado por um interino, o general Eduardo Pazzuelo. Esta é mais uma nomeação que evidencia a megalomania de Jair Bolsonaro, que faz das escolhas dos seus ministros um meio de fazer prevalecer as suas próprias opiniões nas diretrizes das políticas públicas, a despeito de qualquer critério técnico ou científico. Neste caso, o uso da cloroquina nos pacientes com coronavírus e a defesa da flexibilização do distanciamento social. Enquanto o presidente desfila a sua insanidade, com frases e atos que desdenham da catástrofe gerada pelo coronavírus, o país registra recordes de mortes e já alcançou a posição de terceiro país no mundo em número de infectados, ultrapassando a marca dos 370 mil casos em 26 de maio.

Bolsonaro quer policiais de confiança pessoal

O outro episódio que talvez escancare ainda mais o que ‘há de podre no reino do Brasil foi a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça. O herói dos entusiastas da Operação Lava Jato, cotado como um dos grandes presidenciáveis nas eleições de 2022, abandonou o barco do governo Bolsonaro, denunciando-o por reiteradas tentativas de interferência na Polícia Federal, cuja autonomia é inquestionavelmente indispensável para investigações e ações de combate à corrupção. Segundo a denúncia do ex-juiz, Bolsonaro fez mais de uma solicitação para a substituição e indicação do Superintendente e do Chefe da Polícia Federal do Rio de Janeiro. O nome cogitado para Direção Geral da Polícia Federal era o de Alexandre Ramagem, amigo pessoal e homem de confiança da família de Bolsonaro. A nomeação foi vetada pelo Supremo Tribunal Federal.[6] As suspeitas em torno da interferência direta de Bolsonaro na Polícia Federal só aumentam. Logo após a troca dos comandos na corporação, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, antes seu aliado, e agora desafeto, se tornou alvo da chamada ‘Operação Placebo’, que investiga possíveis desvios de recursos destinados ao combate ao coronavírus. Na operação celebrada publicamente por Bolsonaro, houve quebra de sigilo de mensagens do governador, buscas e apreensões em diferentes dependências dele e de sua esposa.[7]

Crimes que envolvem os filhos de Bolsonaro

Desde o depoimento de Sérgio Moro, têm vindo à público mais crimes que envolvem o presidente da República e seus filhos, que também exercem importantes cargos na política. Começa a ser apurada a denúncia feita pelo empresário Paulo Marinho, relatando o vazamento de informações da Polícia Federal aos filhos de Bolsonaro sobre operações que os envolvem diretamente.[8] Trata-se da Operação Furna da Onça, que investigava a chamada “rachadinha”, um esquema no qual deputados nomeiam assessores e ficam com seus salários. O pivô do escândalo da rachadinha é Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar e policial militar, que movimentou R$1.2 milhão de reais entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, de acordo com o relatório do COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). Um valor atípico para quem exerce essas funções. Em uma dessas transações, o ex assessor teria destinado um cheque no valor de R$24 mil à primeira-dama Michele Bolsonaro.[9] Este fato, e o nome de Fabrício Queiroz, não são novos e rondam há tempos a família Bolsonaro, assim como o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes.[10]

Vídeos mostram pressões de Bolsonaro

Em 22 de maio, foi publicizado o vídeo com a gravação da reunião ministerial, apontada por Sérgio Moro como a prova da tentativa de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. O vídeo escancarou muito mais. Apresentou aos brasileiros não só o descompromisso da equipe do governo com a busca de medidas frente à pandemia que assola o país, mas a real faceta dos projetos autoritários defendidos por eles. Em meio a inúmeros palavrões e xingamentos, Bolsonaro ataca aos governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro em razão das medidas de isolamento adotadas nestes Estados. No Ministério do Meio Ambiente, a ordem é aproveitar enquanto a atenção da mídia está voltada para a Covid 19 para “passar a boiada”, ou seja, flexibilizar a regulamentação de preservação de áreas ambientais. O Ministro da Economia, Paulo Guedes, mostra pressa na venda do Banco do Brasil. Enquanto o ministro da Educação, Abraham Weintraub, afirma que os ministros do Supremo Tribunal Federal deveriam ser presos.[11]

Agora, em meio ao caos da pandemia e de seu desgoverno, Bolsonaro alimenta a guerra contra as políticas de isolamento, convocando os empresários a “jogarem pesado” contra os governadores que têm adotado a medida contra o avanço do coronavírus. Na leitura do presidente, estas medidas visam “quebrar a economia para atingir o governo”.[12] No Planalto, Bolsonaro tenta angariar apoio entre os partidos mais conservadores, erroneamente apelidados de “centrão”, atribuindo-lhes cargos em troca de apoio nas votações de projetos envolvendo privatizações. Além disso, vê nessa distribuição de cadeiras mais um respaldo para a sua manutenção no poder, e a conservação de um governo que se mostra incapaz de levar adiante mesmo os projetos dos setores que o bancaram. Fato que cada vez mais intriga qualquer mente racional. O que leva Bolsonaro a dar de ombros à institucionalidade e à razoabilidade esperada de quem ocupa um cargo dessa magnitude? A ala militar é, sabidamente, uma de suas âncoras, mas também não se sabe até quando. Pairam mais dúvidas sobre o que há “de podre neste reino” e sobre a ideia de que, se o país não está à deriva, quem realmente está no comando dessa nau.

 

Aline Piva, analista sênior do COHA, contribuiu como editora

 


 

Notas de rodapé

[1] “Brésil : la dangereuse fuite en avant de Bolsonaro”, https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/05/18/bresil-la-dangereuse-fuite-en-avant-de-bolsonaro_6040012_3232.html

[2] “Bolsonaro, o coronavírus e a crise democrática no Brasil”, https://coha.org/bolsonaro-o-coronavirus-e-a-crise-democratica-no-brasil/

[3] “Homofobia de Bolsonaro é da boca pra fora, diz Regina Duarte”, https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,homofobia-de-bolsonaro-e-da-boca-para-fora-diz-regina-duarte,70002564696

[4] “Saiba qual é o entrave para Regina Duarte assumir o cargo na Cinemateca”, https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/05/21/interna_politica,856962/saiba-qual-e-o-entrave-para-regina-duarte-assumir-cargo-na-cinemateca.shtml

[5] “Bolsonaro inclui salão, barbearia e academia como atividades essenciais”, https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/05/11/bolsonaro-inclui-salao-barbearia-e-academia-como-atividades-essenciais.ghtml

[6] “Leia a íntegra comentada do depoimento de Moro à PF com acusações contra Bolsonaro”, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/leia-a-integra-do-depoimento-de-moro-a-pf-com-acusacoes-contra-bolsonaro.shtml

[7] “Operação contra Witzel acirra suspeitas de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal”, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/operacao-contra-witzel-acirra-suspeitas-de-interferencia-de-bolsonaro-na-pf.shtml

[8] “PGR pede, e empresário que relatou vazamento a Flávio Bolsonaro vai depor à Polícia Federal”, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/pgr-pede-e-empresario-que-relatou-vazamento-a-flavio-bolsonaro-vai-depor-a-policia-federal.shtml

[9] “Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, é alvo de operação no Rio”, https://brasil.elpais.com/brasil/2019-12-18/fabricio-queiroz-ex-assessor-de-flavio-bolsonaro-e-alvo-de-operacao-no-rio.html

[10] “Revelação do Intercept coloca família Bolsonaro no caso Marielle (novamente)”, https://revistaforum.com.br/blogs/ocolunista/revelacao-do-intercept-coloca-familia-bolsonaro-no-caso-marielle-novamente/

[11]“Veja os principais pontos da reunião ministerial que teve gravação divulgada pelo STF”, https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/veja-os-principais-pontos-da-reuniao-ministerial-que-teve-gravacao-divulgada-pelo-stf.ghtml

[12] “Bolsonaro faz apelo a empresários para “jogarem pesado” contra governadores”,  https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/05/15/interna_politica,855008/bolsonaro-faz-apelo-a-empresarios-para-jogarem-pesado-contra-governa.shtml